preferia ser uma ciborgue do que uma deusa 01: A Cosmonauta Valentina
mulheres cosmonautas conquistam o espaço no passado; homens tentam chegar em marte no presente; a ficção especulativa borra as fronteiras do futuro.
“Eu sempre desejei ir a Marte”.
Essa frase foi dita pela cosmonauta Valentina Tereshkova, soviética e primeira mulher a ir para o espaço, a bordo do foguete Vostok-6 em junho de 1963.
Sessenta anos separam sua viagem pioneira do momento em que escrevemos essa newsletter. A União Soviética não existe mais e “cosmonauta” é um termo que ficou em alguma enciclopédia do passado. Mas a frase de Valentina ainda encontra eco no mundo de 2023, inclusive para nós duas que escrevemos essa newsletter. Não somos cosmonautas, nem mesmo cientistas. Somos roteiristas que amam os mistérios do universo e as muitas formas de se fazer ciências.
Prazer, somos Nina e Tainá e nós também adoraríamos ir para Marte.
Aliás, desde pequenas queremos ser astronautas. Nina nomeou sua primeira cachorra de Laika e a gata de Valentina, em homenagem às duas fêmeas pioneiras do cosmos, além de ter se candidatado para um programa espacial. Já Tainá tem estrelas tatuadas em suas mãos e viajou até o deserto do Atacama para vislumbrar um dos pontos de melhor observação do céu noturno do mundo. Claro, nenhuma de nós foi até Marte. Porém, de dentro de nossos apartamentos, nos sentimos diariamente atraídas e inspiradas pelas mulheres que se aventuram através do desconhecido. E foi das nossas trocas infindáveis de mensagens sobre o assunto que surgiu a ideia de fazer essa newsletter.
A ideia é simples: uma vez por mês, escreveremos sobre algumas mulheres cientistas, na intenção de compartilhar com vocês nosso hobby de gastar horas nestas pesquisas. Queremos nos aprofundar na microbiologia, nos mistérios do micélio, na composição das cavernas subterrâneas, entre tantas outras possíveis abas abertas em nossas cabeças. E começamos olhando pro alto, para o universo e as particularidades de Valentina - que ainda está viva. Aos 86 anos, ela não gosta de dar entrevistas, mas falou com uma repórter alguns anos atrás.
Valentina durante a bateria de exames do treinamento.
Valentina contou sobre sua aventura espacial e o árduo processo que a levou até o espaço. Em 1961, ela e mais de mil outras pessoas foram escolhidas para realizar uma série de treinamentos, que definiriam aqueles que estariam mais aptos para a viagem. Ela, uma filha de camponeses, não acreditava que teria chances. Quem comandava tudo era Iuri Gagarin, aka o primeiro ser humano que saiu do planeta Terra.
No início de 1962, começou a preparação ativa. O comandante de divisão, Iúri Gagárin, com todo seu fascínio, era muito exigente. Os treinamentos davam prioridade à vertente psicológica sobre a física. Nos apresentamos como paraquedistas e saltávamos noite e dia, na terra e no mar. Foram estes os primeiros voos. Durante os voos acrobáticos, eram criados curtos momentos de imponderabilidade1 para termos a noção do que era e nos habituarmos a ela.
Os testes eram de dificuldade extrema e, conforme avançava entre eles, Valentina demonstrou sua consistência física e mental, deixando claro que estava pronta pra se aventurar por um lugar tão agressivo quanto o espaço:
Havia um cadeirão circulante em que tínhamos que permanecer sentados, fazendo inclinações para um lado e para o outro. Havia também uma câmara térmica, onde nos mantinham vestindo uniformes de aviador a uma temperatura de 70º C. Tínhamos ainda uma câmara dessonorizada, onde cada um de nós passava dez dias e dez noites.
Ok, câmara térmica nível aquecimento global parece hardcore, mas a gente ficou angustiada mesmo ao imaginar dez dias e dez noites em completo silêncio. É algo que a gente nunca tinha parado pra pensar: como é o som no espaço? Como é a vida sem som? Dentro de nossas vidas super barulhentas, o mais próximo do silêncio que chegamos é ao colocar na orelha aqueles fones caros com cancelamento de ruído. Mas o silêncio completo parece algo desconhecido. Um misto de paz e desespero? Valentina não deu muitos detalhes. Claro, para uma mulher ocupar este lugar, ela precisa esconder muito bem seus medos. É uma pena que o mundo masculino tenha tanta dificuldade em entender que sentir medo não tem nada a ver com covardia.
Aliás, coragem para explorar o novo parece ter sido o que sempre guiou Tereshkova. Antes de ingressar no treinamento de cosmonauta, ela era uma operária do Partido Comunista com treinamento em paraquedismo. Valentina foi selecionada para uma missão feminina, ao lado de quatro outras mulheres: a engenheira Irina Soloviova, a matemática Valentina Ponomariova, a professora Janna Erkina e a secretária Tatiana Kuznietsova. Delas, as duas Valentinas foram as escolhidas para ir ao espaço, cada uma numa Vostok diferente. Mas a Ponomariova era uma mulher sincerona e feminista, o que parece ter incomodado os chefes do programa. Foi dispensada e um homem ocupou seu lugar na aeronave.
Em 16 de junho de 1963, aos 26 anos, Valentina Tereshkova partiu sozinha num voo para fora da atmosfera. Ela ficou 71 horas no espaço, onde deu 48 voltas ao redor da Terra. A vida em silêncio, a gravidade em suspensão, o aperto da cabine em contraste com a ausência completa de linhas do horizonte, nosso planeta como algo externo, a sensação de navegar por um mar negro de estrelas… o retrato que imaginamos de Valentina neste momento é algo que poderia ser definido como sublime.
Depois disso, ela nunca mais saiu do planeta. Virou uma espécie de cartão-postal do regime soviético, viajou pelos territórios comunistas como figura pública dando palestras e enveredou por um carreira política de pouco destaque. Valentina hoje fala pouco e quando fala se mostra ainda bastante nacionalista.
Pra falar a verdade, depois de pesquisar para escrever essa edição, ela passou a ocupar um lugar novo para nós. Continuamos admirando ela, sua coragem e persistência. Porém, achamos um pouco assustador acessar sua lógica tão militarizada e suas ideias conservadoras. Mas, também, como poderia ser diferente? Ela foi treinada e escolhida por ter aptidão com o exército. Agora, tem uma outra coisa nela que não esperávamos, uma recusa à simpatia, uma aspereza talvez típica de quem carrega o orgulho por seu país agora dissolvido… tem algo nela que se recusa a ser totalmente assimilado. Como se ela mesma fosse um planeta distante. Inacessível e inóspita.
O que nos fez pensar: não queremos todas nós, em alguma medida, ser um planeta inteiro? Carregando algo de inexplicável, algo que se recusa a pertencer, que grita no silêncio do espaço. A própria ideia de definir o que é ser uma mulher parece cada dia mais limitante, caber em uma definição binária socialmente estabelecida por homens. Não queremos limites e fronteiras, e sim espaço e expansão. Talvez sejam esses os desejos que guiam uma menina que teima em ser astronauta? Porque pensa numa tarefa difícil. Dos 566 seres humanos que foram ao espaço, apenas 75 são mulheres.
E quando a gente fala em pioneiras, é fácil olhar para elas como separadas de seu espaço-tempo e não como uma constelação de histórias. Outras mulheres soviéticas também fizeram história no espaço, como Svetlana Savitskaya, que em 1984 fez o primeiro passeio espacial, Elena Kondakova, que em 1994 fez o voo mais longo entre as cosmonautas, permanecendo 169 dias, cinco horas e um minuto no espaço.
Svetlana Savitskaya durante o treinamento em condições de microgravidade a bordo de uma aeronave de testes.
E há mulheres de outras partes do mundo. Em 1992, a americana Dra. Mae Jeminson foi a primeira mulher negra a viajar para o espaço. Em 2003, Kalpana Chawla se tornou a primeira mulher de origem indiana a sair da Terra, mas um problema em sua nave fez com que ela explodisse antes do pouso. A história de Kalpana é triste, mas nos consolamos em pensar que, antes de morrer, ela pelo menos conseguiu ver o espaço de fora da Terra (em alguma edição futura, provavelmente, vamos falar mais sobre elas). Estima-se que, entre 2025-26, a Missão Artemis seja lançada e a bordo dela estará Stephanie Wilson, que foi a segunda mulher negra a ir ao espaço, e pode se tornar a primeira mulher a pisar na Lua.
Valentina adoraria ser a primeira em Marte, mas isso não vai acontecer. Até hoje, nenhum ser humano pisou no, dito, planeta vermelho (Nina diz que na verdade ele tem várias cores e é mais para o laranja). Porém, até 2030, a NASA pretende mudar isso. Até agora, diversas missões sem humanos foram e voltaram de Marte, atraídos pela ideia de que o planeta seria potencialmente capaz de abrigar ecossistemas - e que pode ser inclusive um incubador para formas de vida microscópicas.
Marte é o quarto planeta à distância do sol, logo depois da Terra, e possui aproximadamente metade do tamanho de nosso planeta e 38% de nossa gravidade (apesar de ser ⅓, é bem maior do que os planetas que tem microgravidade, ou seja, não ficaríamos flutuando por lá). Marte demora 687 dias terrestres para fazer sua rotação ao redor do sol, e um dia lá é apenas 40 minutos mais longo do que o terrestre. São as similitudes e a promessa de vida que tornam Marte tão atraente para os cientistas. E não só para eles. O homem mais rico da terra, Elon Musk, fundou em 2002 a SpaceX, que tem a missão de transportar terrestres para Marte a preços atrativos. Lá vai mais um homem branco tentar expandir as fronteiras da exploração e colonizar outro território - nesse caso, um planeta.
Tem outras missões duvidosas e bilionárias que fizeram barulho por aí… a mais famosa foi a Mars One, que pretendia lançar uma colônia permanente em Marte em 2025 - missão esta para qual Nina se candidatou, que a brasileira Sandra Maria Feliciano foi uma das cem finalistas e que também deu título ao belíssimo filme de Gabriel Martins.
Pensar na colonização de Marte nos faz pensar no futuro da humanidade. Quando acabarmos com a vida neste planeta, iremos mesmo para Marte? E iremos quem, apenas os bilionários, como Elon Musk?
A corrida espacial foi sempre uma disputa política. Antes, americanos x soviéticos, a dicotomia ilusória que dividia nosso planeta em duas nações, deixando de lado milhões de pessoas à margem dessa ordem mundial - o “terceiro mundo”. Agora, as fronteiras do poder são outras. Um capitalismo de rapina que se alimenta do pensamento de que a Terra pode ser descartável; de que um planeta inteiro pode ser o novo terceiro mundo. Nos fez lembrar de uma foto do deserto do Atacama visto do espaço, como um grande lixão de roupas descartadas:
Mas vamos dar uma virada narrativa pra não afundar a primeira edição no realismo. Por trás das mazelas de colonizar um planeta, há outro pensamento possível: o sonho de conhecer outros mundos, de pensar em novas formas de vida e, quem sabe, especular sobre outras formas de organização social. Ursula K. Le Guin fez isso de forma brilhante em Os Despossuídos, livro em que imagina uma Lua anarquista.
Essa newsletter também será sobre pequenos devaneios de temas que nos movem, com indicações de leitura para quem gosta de ficção científica e narrativas de antecipação. Afinal esse espaço é, também, sobre as mulheres que queremos ser. Se o tempo fosse ilimitado, quem sabe nos aventuraríamos numa carreira científica; como não é, optamos por ser narradoras de histórias científicas. Talvez a gente não corra com os lobos por aqui, mas podemos te contar sobre antropólogas que convivem com alcatéias. Neste caminho preferimos, sem dúvidas, ser ciborgues do que deusas.
Essa frase que emprestamos para título foi escrita pela filósofa Donna Haraway, em 1985, quando ela escreveu o “Manifesto Ciborgue”, que ela define assim:
Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de “experiência das mulheres”. Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também de experiência vivida – uma experiência que muda aquilo que conta como experiência feminina no final do século XX. Trata-se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão de ótica.
Por aqui, também acreditamos que não existem barreiras reais entre a ficção científica e a realidade social, é tudo uma questão de perspectiva e especulação. Como qualquer ficção. E terminamos essa edição com outra frase da autora:
Neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
Desejamos que todas sejamos ciborgues, e que todas, assim como Valentina, desejem chegar tão longe em suas aspirações e formas de vida. Tão longe, quanto Marte.
A filósofa Donna Haraway num retrato durante a pandemia. A gente se identifica com ela até nos animais de pelúcia - risos.
Para quem quer seguir nos assuntos desta edição, algumas recomendações:
Imagens belíssimas do Museu dos Cosmonautas nessa matéria intitulada "O rosto feminino do espaço".
O podcast da Gimlet sobre seis voluntários que, ao longo de um ano, viveram isolados em um planeta falso que simulava as condições de vida em Marte. O resultado foi um BBB de altíssimo nível (em inglês).
Dois bons filmes sobre astronautas: A Jornada (2019), de Alice Winocour, é um filme bem realista sobre a vida de uma astronauta mulher; e O Primeiro Homem (2018), de Damien Chazelle, que desromantiza o heroísmo de Neil Armstrong.
Aqui uma lista de filmes de mulheres cientistas (docs e ficções, biográficas ou inventadas) que estamos fazendo — aceitamos sugestões! :-)
A página da NASA com imagens tiradas pelo telescópio Hubble, pra você se sentir no meio do espaço.
E pode escutar o som do planeta Marte captado pela sonda Perseverance.
O clipe de “Life on Mars” de David Bowie para animar o seu dia.
20/09/1992 - a engenheira e astronauta americana Mae Jemison trabalha em gravidade zero no módulo científico Spacelab Japan. Ea era Especialista de Missão no voo e foi a primeira mulher negra a viajar para o espaço.
Imponderabilidade é o estado em que não se pode discernir se está sob a ação de um campo gravitacional ou em queda livre.
eu amei! o conteúdo, o formato, o tema! ansiosa para as próximas edições, ao infinito e além 🚀
Esse aqui, que já li faz um tempinho, eu amei:
https://www.scientificamerican.com/article/this-efficiency-obsessed-psychologist-and-mother-of-11-revolutionized-kitchen-design/