A edição de hoje é um pouquinho diferente. Hoje sou eu, Tainá, quem escrevo sozinha, após alguns meses de hiato.
Hoje, falo sobre Ana Rosa Kucinski. Nascida em 1942, formou-se em química, Ana Rosa tornou-se ainda jovem professora da USP, sendo assistente no departamento de química fundamental. Sua história foi interrompida em 1974, quando Ana Rosa desapareceu.
Eu conheci Rosa quando fui visitar o CAAF - O primeiro centro de antropologia e arqueologia forense do Brasil. Sua foto estampava uma parede do laboratório, ao lado das fotos de outros 39 desaparecidos políticos que foram mortos pela ditadura civil-militar brasileira (1964-85) e cujos corpos podem ter sido jogados dentro de uma vala clandestina.
A chamada ‘vala de Perus’ está localizada em um cemitério, também criado pelo regime, localizado em Perus, Zona Norte de São Paulo. Dentro dessa vala, haviam mais de mil corpos, que lá permaneceram até os anos 90, quando, já na democracia, foi exumada. Demorariam mais 14 anos até que os remanescentes ósseos fossem levados para uma análise devida, no recém-criado CAAF, fruto de uma parceria entre a UNIFESP e com recursos federais, estaduais e municipais do então governo de Dilma Rousseff.
O caso das ossadas de Perus me é bastante caro: desde 2017, eu frequento o laboratório, e filmo um documentário sobre o trabalho de análise dos remanescentes ósseos, feito pelas cientistas. Para quem se interessar pelo trabalho delas, essa matéria é ótima.
Mas, por algum motivo, toda a vez que vou até lá meu olhar para no de Ana Rosa Kucinski. A imagem dela parece me olhar de volta. Eu já sonhei com ela, perdi horas lendo sua história. Mas, assim como acontece com aqueles que são mortos em tragédias ou vítimas de crimes cruéis, não queria que Ana Rosa ficasse restrita à sua morte. Por isso, queria contar um pouco da sua vida.
Ela era filha de judeus poloneses que vieram para o Brasil. Nos anos 60, Ana Rosa entrou na faculdade de química da USP. Mesmo estudando exatas, gostava de música clássica, balé e cinema. A sensibilidade era uma característica que, até hoje, permanece na memória de quem a conheceu. Um amigo se lembra de um dia, enquanto andava de trem com Ana Rosa, que ela, ao olhar para as luzinhas da cidade, disse que “atrás de cada luzinha dessas tem uma casa, cada luzinha dessas tem pessoas, uma família.”
Poucos anos depois, tornou-se uma das mais jovens professoras do departamento, e não parou de estudar. Era lembrada por um colega de departamento como “terrivelmente humana, culta, inteligente, atrevida e inquieta”. Sua tese de doutorado intitula-se ‘Estudo sobre a extração do molibdênio (VI) em solventes orgânicos e sua aplicação analítica’. Pelo que eu entendi depois de ler e dar muitos googles para não me sentir a pessoa mais burra do mundo, o molibdênio é um elemento químico que é muito presente na natureza. Nas palavras da própria autora, “efetivamente, o molibdênio está presente em materiais biológicos (sangue e plantas) em solos, águas naturais, minérios de tungstênio.” Trata-se de um mineral importante para o crescimento e para a função celular normal, e que, à época, os cientistas ainda não haviam encontrado uma forma satisfatória de extraí-lo e estabilizá-lo. Era isso que Ana Rosa se dedicava a investigar.
Mas a vida de cientista era apenas uma parte de sua vida. Marxista, Ana Rosa também era engajada politicamente. Eram os anos da ditadura e, na clandestinidade, integrava a ALN, junto com Wilson Silva, seu marido. Em 22 de abril de 1974, Ana Rosa saiu da USP rumo à Praça da República, onde se encontraria com o marido para almoçar e comemorar quatro anos de casados. Seria a última vez que os dois seriam vistos.
Sua família lutaria até as últimas instâncias para saber o paradeiro de Ana Rosa. A busca, angariada pelo pai Majer Kucinski, e pelo irmão, o jornalista Bernardo Kucinski, passou por um habeas corpus negado pelo Superior tribunal militar, por um pedido feito ao ex-ministro do Exterior de Israel, por um pedido formalizado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por um pedido ao então governador Franco Montoro, mas não resultou em nada.
Em 1975, a USP demitiria Ana Rosa, por 13 votos favoráveis do departamento, por “abandono de função”, ignorando seu estatuto de desaparecida. Segundo relatos, em seu departamento, formado basicamente por homens, Ana Rosa incomodava. Expressava suas opiniões políticas e também questionava a estrutura do Curso de Química. Em 1975, Majer ainda sofreria uma extorsão em troca de informações da filha, e acabaria morrendo dois anos e meio após o seu desaparecimento, sem respostas.
Ana Rosa Kucinski dedicou seu doutorado a ele:
Em 2014, com a Comissão Nacional da Verdade, a demissão de Ana Rosa da USP foi revogada. A família recebeu um pedido de desculpas da instituição e uma estátua em homenagem à ela foi colocada nos jardins do Instituto.
Hoje, após a Comissão da Verdade, sabemos que Ana Rosa e Wilson foram levados à Casa da Morte em Petrópolis. Lá, foi abusada sexualmente, torturada, morta e teve seu corpo incinerado. Provavelmente, Ana Rosa não está na Vala de Perus. Seu corpo não carrega mais molibdênio em seu sangue. Após ter sido incinerado, transformou-se em cinzas, misturando-se à matéria orgânica que ela tanto estudava.
O verso que a poeta russa Marina Tsvietáieva escolheu para encerrar seu poema ‘Encontros’ diz:
“então, enterre-me no céu!”
Quando leio esse verso, penso na Ana Rosa. Dentre a dor do que pode ter acontecido com ela no momento em que morria, pensar em uma comunhão póstuma com o que há de mais elementar no universo me oferece algum alento.
Mais do que um verso, Ana Rosa ganhou um livro todo.
Seu irmão, Bernardo Kucinski, tornou-se um jornalista bastante conhecido, sendo também professor da USP. Escreveu um livro chamado K., no qual, entre a ficção e a realidade, ele transcorre sobre o desaparecimento de Ana Rosa.
A obra se inicia com o narrador recebendo do carteiro uma carta endereçada à irmã desaparecida. Ele a recebe, entra em casa, pensa:
“Essa casa ela nunca conheceu. Fiz a contagem dos tempos e descobri que já haviam transcorrido seis anos de seu desaparecimento, quando compramos a casa desgastada de velhos imigrantes portugueses. Não, ela nunca conheceu a nossa casa. Nunca subiu os degraus íngremes do jardim da frente. Nunca conheceu meus filhos. Nunca pôde ser a tia de seus sobrinhos. Eu sempre lamentei em especial essa consequência de tudo o que aconteceu.”
A história de Ana Rosa é uma história triste. Uma história inconclusa, de um futuro roubado, de uma família que não tem outra escolha, senão viver um luto infinito.
Para mim, a maior tristeza é que, quando uma mulher morre de forma violenta, sua vida fica grudada na imagem terrível de sua morte. Torna-se impossível separá-la da tragédia. Mas acredito que narrar Ana Rosa é uma tentativa de enxergá-la por uma nova lente. Para além de toda a dor, fica a imagem da mulher que estudava o mundo em suas micro-partículas e que tentou mudar o mundo em macro-ações corajosas.
Assim me despeço de Ana Rosa. De forma lacunar, como quem tenta desvendar uma imagem a partir de seus fragmentos, sabendo que há muito mais a ser visto do que aquilo que apenas consigo tatear.
De alguma forma, foi esse o exercício de toda essa newsletter.
Agora, nos despedimos também dela.
Após três curtas edições, eu e Nina concluímos que não seríamos capazes de seguir com esse projeto. Entre mestrado, sets de filmagem, filmes, roteiros e a vida rolando, a tarefa de nos reunirmos para escrever uma newsletter e mergulhar horas nas pesquisas acabou se mostrando inconciliável. Seguimos aqui no mundo offline sempre juntas, em outros projetos e na vida!
Quem sabe, no futuro, a gente volta com esse tema em outro formato, algum projeto que possa ser remunerado, para assim termos a dedicação necessária ao contar sobre tantas mulheres cientistas que nos emocionam e inspiram.
Obrigada por toda a leitura e carinho. <3