#02: As Marias na Medicina
pioneirismos na medicina; o discurso médico-criminal; o racismo nas ciências médicas; o controle de corpos
Se você, assim como a gente, cresceu vendo todas as temporadas de CSI, então também deve achar que encarar a morte de forma científica é um assunto fascinante. E aí que, navegando por essas águas forenses, nos deparamos com a pergunta: quem foi a primeira CSI brasileira? Demos um google e nos deparamos com o nome da primeira legista brasileira, chamada Maria Theresa de Medeiros Pacheco.
Lá, achamos um artigo de autoria de Sabrina Guimarães e Lina Aras, que nos contou a biografia da médica. Mas essa mesma busca nos apresentou ainda uma segunda dissertação, de Mayara Santos, sobre outra figura que até então não conhecíamos: Maria Odília Teixeira, a primeira mulher negra a se formar como médica no Brasil.
Foi a partir dessas duas fontes que escolhemos falar sobre estas pioneiras da medicina nessa edição. Não vamos aqui nos debruçar em pormenores das biografias de cada uma, mas sim numas ideias que conectam elas através das nossas lupas, e que nos levaram, inclusive, a uma outra mulher que tem Maria no nome. Se depois você quiser saber mais sobre a vida delas, recomendamos que leia os dois trabalhos acima citados.
Então, como nos ensinam os legistas, vamos por partes ;-)
AS MARIAS
Maria Odília Teixeira. Nasceu em 1884, em São Félix do Paraguaçu, no recôncavo baiano, filha de José, um médico branco de origem humilde, e Josephina, mulher negra cuja mãe havia sido escravizada e depois alforriada. Odília mudou-se para estudar em Salvador e em 1904 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia. Formou-se em 1909, sendo a primeira mulher negra e a sétima mulher a se formar neste curso. Ela se destaca, também, por ser a única estudante mulher a não estudar obstetrícia em sua dissertação; optou por se debruçar sobre a cirrose hepática. Depois de formada, voltou para o Recôncavo, onde abriu uma clínica junto ao seu pai, um médico conhecido na região, e seu irmão, também médico. A clínica da Família Teixeira fez sucesso nas cidades de Cachoeira e São Félix, e Maria Odília, a única médica da região, era figura carimbada nos jornais, que passaram a divulgar com orgulho seus feitos. Alguns anos depois, ela volta para Salvador, vira a primeira mulher negra a ser professora da Faculdade em que se formou, e vai ministrar aulas práticas na Maternidade Climério de Oliveira, que existe até hoje em Salvador. É muita carga de pioneirismo pra uma só mulher - nós só podemos imaginar as barras que ela deve ter enfrentando no caminho.
Já Maria Theresa de Medeiros Pacheco, mulher branca, nasceu em 1928 em Alagoas e se mudou para Salvador em 1948, para cursar a famosa Faculdade de Medicina da Bahia (sim!, a mesma que Maria Odília havia frequentado algumas décadas antes, e apesar delas não terem se cruzado pelos corredores - Odília larga a atividade docente quando se torna mãe). Maria Theresa tinha aquele pacote raro para uma mulher na época, família liberal e com algum poder aquisitivo, então lá foi ela pra faculdade mesmo quando poucas mulheres iam. Seguiu seu caminho para a obstetrícia e ginecologia, e, após a graduação, começou a atender vítimas de atentados sexuais, e foi daí que ela se aproximou da Medicina Legal. Inclusive, por mais mórbido e violento que seja, até hoje o IML é não só o local que recebe cadáveres, mas também para onde são encaminhadas as pessoas (vivas!) que foram vítimas de violências sexuais, para fazer exame de corpo-delito. Bom… Maria Theresa assim se tornou a primeira mulher no país a trabalhar formalmente com sexologia forense, no IML Nina Rodrigues.
É nesse ponto que a história das nossas duas Marias se cruzam. Nina Rodrigues foi, de acordo com o google, um “professor catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Bahia, falecido em 1905”. Quando Maria Odília entrou na faculdade, o recém-falecido havia deixado um legado (maldito). Ele era o autor de “As Raças Humanas”, no qual defendia, por um viés teoricamente científico, a superioridade da raça branca, e considerava a mestiçagem um atraso para o Brasil. Sim, era um racista, higienista e um dos nomes mais proeminentes da medicina de seu tempo; até hoje, o IML de Salvador segue levando seu nome.
O RACISMO CIENTÍFICO
No Brasil daquela época, pós-abolição, as teorias científicas serviam a um ideal político: deixar a população negra à margem, e embranquecer o país com o incentivo à imigração branca/européia. Como fazer isso? Criando um discurso de que a “raça negra" era inferior à "raça branca". O racismo científico, propagado por Nina Rodrigues e por muitos outros médicos, estava bastante em voga no século XIX e XX, e era ensinado dentro das faculdades de Medicina (não bastava o pioneirismo e não ter pares dentro da faculdade, Odília ainda tinha que "estudar" essas violências).
Na época, exatamente por esse imaginário crescente, o interesse nas ditas “ciências criminais” era alto. Havia um interesse na ideia de que algumas pessoas (vulgo, população negra) eram mais “propensas ao crime” do que outras (vulgo, população branca). E aí, vale a gente parar pra pensar um pouco nas teorias raciais da criminalidade. Elas eram uma forma de, por meio de uma suposta ciência, defender e legitimar institucionalmente o racismo. Essas teorias absurdas, infelizmente, não viraram letra morta, pois ajudaram a formar um imaginário que ainda encontra eco e muitos defensores no século XXI.
Toda vez que a gente pensa em “criminologia”, não conseguimos passar do fato de que toda a base dessa ciência, tão usada para desvelar quem cometeu um crime, é higienista. Os estudos criminais enquanto ciência se formaram no século XIX, junto com o advento das grandes metrópoles européias. A ideia era criar uma ciência para compreender a "mente criminal" e a existência dos “corpos perigosos” que ameaçavam a vida dos cidadãos de bem. Ou seja: uma ciência inteira que tem como base uma noção - absolutamente perigosa - de que um ser humano pode ser “naturalmente ameaçador”. E não preciso dizer que os tais “criminosos maldosos por natureza” eram sempre: mulheres, pessoas não brancas, nunca europeus. Olhar para as raízes problemáticas da criminologia nos ajuda a compreender diversos problemas de seu uso no presente.
A discussão atual de como os algoritmos de reconhecimento facial utilizados pela polícia no Brasil e em outros países operam, são um exemplo prático de como o modus operandi da criminologia segue sendo racista. A inteligência artificial, nesses casos, é usada para vigiar corpos pretos, em um sistema de retro-alimentação das desigualdades raciais: 90% das pessoas detidas com base em câmeras de reconhecimento facial são negras.
JACINTA MARIA
A interseção entre racismo e o IML, que, por sua vez, conecta-se profundamente não só com a criminologia, mas também com a própria estrutura policial, vai longe. A gente cita a história de Jacinta Maria de Santana, uma mulher negra, com poucos recursos financeiros e sem residência fixa, que em 1900 sentiu-se mal e faleceu perto da Estação da Luz. Seu corpo foi levado pela polícia até o IML, onde foi embalsamado pelo médico Amâncio de Carvalho, que era racista e seguidor da mesma pseudo-ciência de seu contemporâneo Nina Rodrigues. Seu corpo foi exposto e permaneceu por quase três décadas na faculdade de direito da USP, onde alunos achavam divertido "brincar" com o cadáver de Jacinta, dando beijos na boca dela durante os trotes. A história se desdobra numa trilha de violências, desde o apagamento da sua identidade, a uma briga pela posse do corpo de Jacinta depois da morte de Amâncio.
A pesquisa completa pode ser lida aqui, e foi descoberta pela historiadora Suzane Jardim, uma das figuras mais importantes na historiografia recente. Em suas próprias palavras:
Venho estudando alguns jornais publicados por entidades negras ao longo do século XX. Meu objetivo é compreender quais discursos eles veiculavam sobre os grupos desviantes e a questão criminal. Até os anos 1970, a militância dessas entidades era muito voltada ao disciplinamento de corpos e mentes. Uma autoproteção contra armadilhas racistas e punitivistas, que criou linhas invisíveis, colocando seus membros como ‘negros de bem’, em oposição aos demais negros, associados ao crime e à marginalidade.
Não é que Suzane tenha sido a primeira a citar Jacinta, outros pesquisadores já tinham feito isso. Mas, como a própria Suzane nos escreveu em mensagem, ela "apenas" foi uma das primeiras a dar total foco a Jacinta e sua vida, não a incluindo como um acessório dentro da história de São Paulo e da Faculdade de Direito.
O trabalho de Suzane nos faz pensar em novas possibilidades de recontar a história de vidas que, pelo racismo, foram apagadas dos livros e dos registros oficiais. Ter uma biografia escrita e sua história narrada para o futuro é um privilégio de pouquíssimos. Nos lembramos do “Vênus em dois atos”, de Saidiya Hartman, no qual ela se questiona sobre as possibilidades de imaginar existências de mulheres que são relegadas a notas de Rodapé dentro da história:
Como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e, ao mesmo tempo, respeitar o que não podemos saber? Como alguém ouve os gemidos e gritos, as canções indecifráveis, o crepitar do fogo nos canaviais, os lamentos pelos mortos e os brados de vitória, e então atribui palavras a tudo isso? É possível construir um relato a partir do “locus da fala impossível” ou ressuscitar vidas a partir das ruínas?
A partir dessa inspiração, a gente perguntou para a Suzane Jardim como ela gostaria que Jacinta fosse lembrada?, e a resposta:
Gostaria que lembrassem dela como alguém que não teve emprego fixo, mas que trabalhava com o que era possível pra sobreviver, que dava bom dia aos estudantes e passantes em geral, que podia andar pela cidade cantando canções quando dava na telha e que gostava de se divertir tomando "umazinha" quando podia - coisas banais que fazem parte de quem é humano, completo e complexo.
Gostaria que pensassem nela como alguém que circulou pela cidade antiga, que tinha seus sonhos, problemas, metas e que teimava em fazer parte da metrópole que estava se modernizando tentando esconder a existência de pessoas como ela. Que ela fosse lembrada como mulher símbolo da perversidade causada pelo racismo, da banalização das vidas negras, mas não só desse modo - mediada pela tragédia.
Gostaria que ela fosse mais que um símbolo que cause indignação, gostaria que causasse também movimento - não por pena ou por dó do que lhe aconteceu - mas pelo entendimento do que o racismo no Brasil foi e é capaz e percepção de que, quando não o combatemos em sua complexidade, lógicas perversas como a de Jacinta se normalizam e tendem a se repetir - seja no genocídio cotidiano, na violência policial ou na criminalização que impede que pessoas pretas, como Jacinta, tenham sua humanidade e complexidade reconhecidas pela sociedade.
uau.
Depois dessas notas, fica até difícil voltar e fechar nossa história. Mas há ainda outro ponto que gostaríamos de tocar:
A MISOGINIA ESTRUTURAL E O CONTROLE DE CORPOS
Retomamos nosso fio narrativo e voltamos à história de Maria Odília. A gente não consegue afirmar como ela pensava, e temos menos botas bibliográficas sobre ela do que temos sobre Maria Theresa, que, afinal de contas, viveu até 2010. Mas sabemos que Odília jamais, em nenhum trabalho, se utilizou de nenhuma metodologia acima citada. O que, dentro de um ambiente acadêmico que defendia com unhas e dentes esses ideais, quer dizer muita coisa. Na pesquisa dela observamos um tratamento muito digno aos enfermos da cirrose, bêbados e prostitutas em geral, o que mostra um outro direcionamento para seu tempo; além de existir uma coleção de pessoas (em maioria mulheres) que faziam agradecimentos públicos nos jornais em circulação na época pelos atendimentos médicos de Odília.
Naquele tempo, a noção do corpo de uma mulher era bastante complicada. Havia teses que defendiam que uma mulher podia ser definida como um útero servido por órgãos e que estaria naturalmente preposta à maternidade, para a qual deve dirigir todas as suas atenções e cuidados, missão esta que se amola todo o seu organismo.
Nesse sentido, é relevante o fato de que a outra Maria, a Theresa, tornou-se diretora do IML de Salvador em 1969. Ter uma mulher lá dentro, em uma posição de poder, modificou a forma de tratamento das mulheres que chegavam ao local. Afinal, é bastante complexo para uma mulher que passou por uma violência sexual tenha que ir até um local cercado de cadáveres para ser examinada, ainda mais por um homem, né? Por tudo que lemos sobre e a partir da própria Maria Theresa, vemos como ela se esforçou para criar uma recepção mais acolhedora para quem chegasse até lá para fazer um corpo-delito. Além disso, ela problematizou uma ideia bastante comum à época: o diagnóstico da integridade do hímen para comprovar a virgindade de alguém.
Aqui, vale voltar lá atrás: acreditamos que a medicalização do corpo feminino no século XIX foi uma forma de legitimar o controle patriarcal sobre nossos corpos, e a gente segue vivenciando isso até hoje. Acho que todo mundo que possui um corpo que menstrua entende o quão violento pode ser ir até um ginecologista, ou fazer um parto e sofrer violência obstétrica.
POR MAIS MARIAS NA MEDICINA
Os gestos de cuidado delas duas revelam um olhar díspar da classe médica dominante de seus tempos. Ainda que o pensamento por trás destes atos não tenham sido declarados ou registrados pela história da saúde no Brasil, eles estão ali, nas frestas das práticas médicas. Nos fazendo farejar um rastro entre elas, uma continuidade de quem se reconhece pela exceção. As duas estudaram na mesma faculdade com poucos anos de diferença… então, quem sabe, os ensinamentos da professora Maria Odília puderam ecoar até Maria Theresa. E dela para outras estudantes e médicas legais que vieram depois - e a partir - dela. Progressivamente, a possibilidade de uma nova medicina emerge, que pensa e trata os corpos a partir de uma lógica de respeito e singularidade.
O caminho ainda é longo, sabemos. Com quantas médicas negras você já se consultou? Quantas vezes você ficou aflita durante um procedimento médico invasivo? O IML ainda é a porta oficial para o corpo-delito. Esperamos que não demore mais um século para o IML de Salvador vir a se chamar Maria Odília Teixeira & Maria Theresa de Medeiros Pacheco.
Algumas iniciativas e leituras interessantes:
A nefrologista Scyla Maria Reis (da foto acima) fala nesta matéria sobre a representatividade negra na medicina.
Tire Seu Rosto da Minha Mira visa o banimento de tecnologias racistas de reconhecimento facial.
Esse episódio do podcast Mano a Mano traz uma excelente discussão sobre públicas de alimentação, a partir de um viés médico social/racial.
Indicamos o livro “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”, da aqui citada Saidiya Hartman, que saiu ano passado em uma edição linda da Editora Fósforo.
Aguardamos ansiosas o documentário sobre a Maria Odília, anunciado este ano e dirigido pela cineasta Mariana Jaspe.
O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde se localiza na cidade de São Paulo, e é organizado por diversas profissionais da saúde, sempre com o viés de autonomia dos corpos. Além de realizarem atendimentos, no site delas existem diversas publicações gratuitas que valem ser lidas.
Uau! Que pesquisa hein?! Será que há alguma menção em monumento público à Maria Odília em São Félix ou em Cachoeira? Estive por lá e não sabia dessa história incrível.